O SER – H. Moreno R.* – Tradução de Wilson Coêlho

Toda filosofia que aspira a ter validade e universalidade deve ser um pensamento a partir de uma situação, uma reflexão da realidade da qual o homem em particular faz parte; no nosso caso, a partir da situação indígena de Chimborazo, uma realidade em que cada comunidade vive, sofre, desfruta e tenta mudar. Ou seja, buscamos uma filosofia que, sendo expressão de um mundo cultural concreto, descubra seu “próprio estar sendo assim”, dentro de um contexto, neste caso equatoriano e latino-americano; que, em última análise, nos ajuda a descobrir o que somos e as circunstâncias em que somos.

Uma parte importante do nosso mundo histórico cultural, que marca uma certa característica constitutiva (em suma, o substrato comum e último de toda a realidade latino-americana), parece ser o mundo nativo descrito no capítulo anterior com toda a sua complexidade histórica, sua visão mítico-mágica do mundo, ainda em vigor no ser cultural dos indígenas, com todas as suas virtualidades e defeitos, com todos os ultrajes e sobreposições culturais.

Dizemos que existe um estar sendo assim**, pertencente ao latino-americano e oculto nas entranhas dos indígenas, não reconhecido como tal pelos filósofos europeus em particular, e pela civilização ocidental em geral. Até hoje era praticamente impossível alcançar o mundo interior dos indígenas latino-americanos e, no nosso caso específico, dos indígenas de Chimborazo.

Essa impossibilidade de se chegar à realidade indígena como uma realidade autêntica se deve ao fato de o índio ter sido considerado pelo europeu como alijado do ser, marginalizado dele, humilhado, até certo ponto considerado como não ser, porque não é como o europeu, considerado este como o único modelo de ser.

Além disso, dentro do mundo latino-americano, o ser indígena até recentemente nem sequer fazia parte do povo, estava fora dele como um pária desta sociedade pró-europeia e pró-cristã, negando-lhe todos os tipos de direitos, mas impondo-lhe todos os tipos de deveres e obrigações.

Desde a exterioridade do ser, no qual ele tem sido inserido, será afirmado agora o próprio ser do indígena, que ao mesmo tempo é o substrato básico do que o ser latino-americano poderia ser. Tomar essa atitude significa, para usar os termos de Dussel, “sair da situação dos oprimidos em uma cultura de silêncio, da adesão culpada, com vida, pensamento e palavras, a uma autodomesticação para que outros possam colher os benefícios da opressão”. (Dussel; 1971: 27).

Isso leva a uma dupla superação: do universalismo abstrato da filosofia europeia moderna, ideologia das ideologias que justificam a vontade de poder que os países do centro exercem sobre a periferia mundial; e o populismo ingênuo, dos métodos imitativos de outros horizontes políticos e não propriamente latino-americanos. Só assim podemos esclarecer as categorias que permitem que as nações latino-americanas e as classes dependentes e dominadas se libertem da “opressão do ser, como fundamento do sistema mundial vigente, nacional e neocolonial” (Dussel; 1975: 221).

A partir dessa visão temos que interpretar o ser do indígena.

Não podemos repetir servilmente as mesmas categorias usadas pelo pensamento europeu, mas devemos partir de todo o grande substrato mítico-mágico do passado indígena, de toda a complexidade histórica e dos repetidos processos de adaptação que os indígenas tiveram que adotar para continuar subsistindo e continuar a manter de alguma maneira sua própria identidade.
A filosofia do ser europeu não só condenou a não ser tudo o que não se enquadra na sua compreensão ontológica, como com esta mesma situação a reduziu a ser de e para outro. Mas esse “não-ser” que o indígena foi condenado, precisamente, torna-se o ponto de partida de seu pensamento e afirmação de seu próprio ser. Propõe-se assim uma metafísica do homem, concreta, relativo-absoluta, capaz de exprimir a sua própria substantividade, a sua liberdade e a sua responsabilidade. Em suma, isso significa estabelecer uma opção-ético-política em favor da periferia oprimida, sendo seu principal representante o indígena de estatura, que parte da única coisa real: seu simples ser assim”.

*MORENO R., Hugo O. Introducción a la Filosofia Indígena. Riobamba: Pontificia Universidad Catolica del Ecuador, 1983, pp. 106-108.

** Estar sendo assim: É um conceito tomado emprestado de Carlos Cullen, em sua obra “Fenomenologia da Crise Moral”. É a relação imediata da autoconsciência-nação consigo mesma. É a racionalidade da vida. É a razão dos povos que está meramente lá.

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