Ouro de Tolo

Wilson Coêlho

Como reza a lenda, os canelas verdes, alcunha dos moradores de Vila Velha, no dia 23 de maio comemoram o dia da Colonização do Solo Espírito Santense, lembrando os 23 de maio de 1535 quando os portugueses, a bordo da caravela Glória, desembarcaram na Prainha, em Vila Velha, para colonizar a então Capitania do Espírito Santo. Sem querer entrar em muitos detalhes, refiro-me ao fato de que Vasco Fernandes Coutinho recebeu por Carta de Doação e Carta Foral a tal Capitania do Espírito Santo. Nesta “comemoração” que acontece todos os anos, são distribuídas medalhas como o reconhecimento de algumas pessoas por serviços ou ações meritórias prestados em diversas áreas.

Senti-me lisonjeado ao receber o telefonema do amigo e vereador do PT de Vila Velha, José Nilton, me indicando para receber a medalha Vasco Fernandes Coutinho. José Nilton é companheiro de muitas lutas. Desde as greves gerais no final dos anos 80, bem como as mobilizações tanto dos sindicatos dos bancários, ferroviários, metalúrgicos e outros movimentos sociais, inclusive, nas campanhas para eleger Lula à presidência da república em 1989. José Nilton e Joel Guilherme, então diretores do sindicato dos bancários, com o palhaço Azedinho e eu, fundamos o Maracutaia, grupo teatral que atuava nas ruas com intervenções, como a democratização e regionalização dos meios de comunicação, “Fora Collor” e outras. Participamos em seminários de movimentos sociais organizados, campanhas setoriais dos trabalhadores de diversas categorias, inclusive, contribuindo com a CUT nos debates na relação entre capital e trabalho e aproximação com as comunidades. Também pude contar com a contribuição de José Nilton, através do Sindicato dos Bancários, quando organizei, em 1995, o “Virá que eu vi” – Encontro de Teatro Popular Latino-Americano, na cidade de Nova Venécia, com a participação de grupos da Argentina, Chile, Peru e alguns estados do Brasil, além dos grupos capixabas. Por esta e por outras, agradeço ao reconhecimento de minha militância artístico-cultural pelo vereador José Nilton, cujo trabalho – apesar do pouco tempo que está na câmara – é digno de admiração, mas tenho algo a declarar: eu me recuso a receber esta medalha.

Recuso a medalha porque me parece estúpida a ideia de comemorar a colonização, principalmente quando significa eu assumir o papel de colonizado como um “bom moço” entre os colonizados. Nesse processo de colonização, Vasco Fernandes Coutinho simboliza o genocídio, o assassinato cultural dos povos originários (Aimorés, Botocudos e Puris), a expansão do território europeu, o roubo e a exploração do trabalho escravo.

Considerando que a indicação de meu nome se deu devido à minha luta nas artes, principalmente como escritor, diretor de teatro e agente cultural, receber essa comenda seria assinar um atestado de fracassado. Como trabalhador das artes, não posso receber um prêmio numa cidade que não tem um único teatro funcionando, nenhum centro cultural ou casa de cultura, uma biblioteca mal equipada e carente de livros importantes para a formação cultural e memória de seu povo, a inexistência de um cinema que não seja comercial e adaptado como uma extensão para o público consumista de shopping center. Ainda, na condição de professor, como receber uma condecoração de uma cidade que tem o mais baixo salário da Grande Vitória? Sem contar com as deploráveis condições do sistema de saúde, de recolhimento de lixo, campeã da dengue, esgotos a céu aberto e entulhos para espalhados por toda a cidade. Escusado dizer que também não me parece lúcido esquecer que o município tem um altíssimo índice de dependentes de drogas e de violência. Pior ainda é saber que a tentativa de solucionar estes problemas se resume e indicativos também violentos, ou seja, a repressão e não projetos de políticas públicas de prevenção, distribuição de rendas e socialização dos bens produzidos pelo município. Inspirado em Artaud, retomo a pergunta de sua carta endereçada aos reitores das universidades europeias: “com que direito pretendeis canalizar a inteligência e diplomar o espírito?” Recuso a medalha, assim como eu nunca aceitaria o título de “operário padrão” oferecido por uma empresa que explora o trabalhador. Tal atitude seria reprisar o papel de “O homem que virou suco”, no filme de João Batista de Andrade. Não me apetece vangloriar o estado de colonização. Mais inteligente seria pensarmos em processos de descolonização como, por exemplo, desfazer os passos de Anchieta e tomar o percurso contrário do padre genocida. Melhor seria inaugurarmos uma festa para o dia 11 de outubro como o último dia da liberdade, considerando que – no dia seguinte – chegou Cristóvão Colombo “descobrindo” a América.

Parafraseando Raul Seixas, em Ouro de Tolo, eu devia estar contente por ter conseguido tudo o que fiz, mas confesso abestalhado que estou decepcionado e, mais ainda, parece interessante citar outro trecho da música afirmando que “eu não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar”.

Wilson Coêlho Pinto

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