Grupo TARAHUMARAS – Uma matematização do delírio (Gilbert Chaudanne)

Em 1987, conheci o Grupo Tarahumaras, liderado por Wilson Coêlho. O encontro se fez por causa de uma paixão em comum pela obra do escritor francês Antonin Artaud (1896-1948). Eu, oriundo do mesmo país que Artaud, o conheci – ou exatamente sua obra – em Istambul, quando estava voltando da Índia. Eu tinha comprado uma antologia da Poesia Francesa nesta mesma cidade e foi lá que descobri, no meio daquelas poesias bobas, um texto que tinha o cheiro e a consistência do osso – quero dizer que era um texto duro, cortante, erguido. E esse texto era justamente a “Carta aos reitores das universidades européias”, de Antonin Artaud. A violência sacrificatória me deslumbrou e me mostrou que a Poesia Francesa não era feita só de complacências lacrimejantes de Lamartine, do gigantismo hollywoodiano de Victor Hugo ou mesmo das meia-tonalidades do simbolismo.

Essa carta foi uma bofetada significante, para mim, que tendo deixado a universidade por falta de perspectiva epistemológica, finalmente, encontrava um autor que tinha uma violência metafísica, algo como um antigo sacrifício dos miolos para alcançar um transtorno revelador.

Tendo vivido na França, em 1968, a revolta estudantil e, depois, tendo me revoltado contra a onipresença da Razão cartesiana e francesa, o pensamento ocidental, científico e racional, entendi, com Artaud, que esses caminhos de conhecimento chegavam num impasse, porque entendi que a Razão cartesiana-francesa não era a pedra angular do pensamento. Havia que abri-lo, esse conhecimento, sobre algo mais essencial e, ao mesmo tempo, experimental/vivido. Havia como uma espécie de arco-íris do conhecimento, mas esse conhecimento seria visionário, como o dos poetas, dos místicos, dos artistas – e até dos filósofos pré-socráticos. “Na cisterna estreita que vocês chamam de pensamento, os raios espirituais apodrecem como a palha”, escreve Artaud na “Carta aos reitores das universidades européias”.

A partir dali, li a obra de Artaud quase toda e me deparei com o livro “O teatro e seu duplo”.

Ora, o teatro não era minha pradaria. O teatro sempre me pareceu como algo mumificado, algo que não sabe dizer o nome da vida.

Para mim o teatro era o sumo do artifício, excessivamente codificado e simplesmente não entendia como os atores não tinham vergonha de assumir tanto artificialismo.

O paradoxo é que eu gostava muito de ópera que, como o teatro clássico, é altamente codificado, deliberadamente artificial. Gostava dos filmes de Fellini, sobretudo, o Casanova, onde aparece muito esse lado operístico.

Mas aqui, em Vitória, em 1987, entrando no Grupo Tarahumaras, fiquei – ao vivo – em contato com a prática de um teatro artaudiano. E o diretor, Wilson Coêlho, me surpreendeu positivamente porque me mostrou o que podia ser um teatro-não-mumificado.

Porque o Tarahumaras realmente entendeu – o Espírito artaudiano. Muita gente confunde o teatro de Artaud com um teatro dionisíaco (Zé Celso Martinez Corrêa), o que é uma tendência “natural” no Brasil = há uma carnavalização de Artaud.

E o Grupo Tarahumaras nunca caiu nessa armadilha, porque sempre soube trabalhar as duas vertentes de um teatro artaudiano: a crueldade e a estranheza. Na primeira montagem do Grupo Tarahumaras = Antonin Artaud – Atos de Crueldade, senti isso: a prática de uma crueldade não gratuita, mas pedagógica, sobretudo, a cena de Os Cenci (trecho de uma peça de Artaud, baseada em Stendhal e Shelley), peça dentro da peça, onde a estranheza alcançava seu apogeu de uma maneira quase ácida.

E o que está surgindo ali, justamente, é a estranheza – mas o que é a estranheza segundo Artaud?

Talvez isso: o espectador está diante de algo que não tem nome, está diante do inominável, mas que está presente, absolutamente presente e mais presente do que o que tem nome, como uma árvore, uma cadeira, um rochedo; é essa presença de algo completamente outro, de uma espécie de grande “estrangeiro” – “um grande Outro” – que, em geral, é identificado como sendo o Ser, ou Deus, mas que em Artaud e, no Grupo Tarahumaras, Deus apanha mais do que é elogiado, louvado – um culto ao avesso?

O Grupo Tarahumaras, assim, não caiu na armadilha fácil do Dionisismo. Ele pode até ter uma espécie de semelhança com o Dionisismo, mas é mais pelo fato de ser um teatro de corpo, do corpo, mas de um corpo trágico, cortado, que tem a ver com a tragédia grega que teria tomado um banho de ácido.

O trabalho do Grupo Tarahumaras é realmente um trabalho e não uma curtição. Talvez, os “Tarahumaras”, sejam aqueles horríveis trabalhadores que Rimbaud chamava para o futuro, para continuar seu trabalho. E quando uso aqui a palavra trabalho, não é uma metáfora, uma imagem poética, porque para montar uma peça o Grupo ensaia toda a semana durante 4 a 6 meses ou mais.

Porque, ali, o diretor Wilson Coelho faz um trabalho cirúrgico com seus atores. E a imagem de uma cirurgia não está em contradição com a concepção artaudiana – já que ele, Artaud, também, usou essa imagem.

Durante esses ensaios todos, há como uma espécie de aniquilação do “pequeno eu”, do eu narcísico que é até comum para quem gosta do palco (a exibição) para instalar no lugar desse eu inflacionista (a egolatria) algo que é da ordem de um automatismo transcendental (o que pode ser a definição do transe). Mas também não se trata exatamente de um transe, porque o transe, ele bebe numa transcendência, ao passo que o ator artaudiano bebe numa ausência que se manifesta pela sombra de um grande outro. Tem-se confundido muito o teatro Artaudiano, como o teatro dionisíaco (Zé Celso) ou o psicodrama, ou a tragédia grega. Há um parentesco, mas é superficial – o teatro artaudiano do Grupo Tarahumaras não se dá ao conforto de dar o nome dos deuses, de ficar sempre num estado de efervescência na ausência dos deuses que é talvez o prelúdio ao verdadeiro nascimento do Homem, do Homem filho do Homem e não filho dos Deuses.

Depois de Antonin Artaud – Atos de Crueldade, participei de várias peças: O Filho Pródigo (releitura de Le malentendu), de Albert Camus, Van Gogh, o Suicidado, Uma Temporada no Inferno (baseada na vida e obra de Arthur Rimbaud), Para acabar com o julgamento de deus (adaptado da obra radiofônica de Artaud Artaud), etc. Também na emissão – na Rádio Universitária da UFES – da emissão de debate sobre “Para acabar com o julgamento de deus”, além das festanças cruéis de 1996 – no centenário do nascimento de Artaud. Mas sempre e até hoje, foi esse trabalho de “limpeza ontológica” – raspar a carne até o osso – uma espécie de desnudamento cruel do eu, dos eus, e que às vezes perde seu caráter tétrico (Antonin Artaud – Atos de Crueldade) para adquirir uma quase leveza apolínica como em Uma Temporada no Inferno (“Metropolitano”). Dessa vez, a estranheza ontológica não se manifesta pelo tétrico, mas numa quase doçura que pode cortar como uma navalha = nova crueldade – uma crueldade aveludada?

Talvez, outra armadilha é considerar o trabalho do Grupo Tarahumaras tem algo a ver com o psicodrama (Moreno).

Este pode até surgir, não como caminho do Ser-personagem, mas na forma da aniquilação do eu pessoal, do pequeno eu ator (nos ensaios, laboratórios de lágrimas, ódios, amores…). Porque o ator é simplesmente convidado a assistir a sua própria morte, o que não se faz sem lágrimas, gritos, revoltas (psicodrama da perda do eu), mas ali não se procura o descarrego, uma descarga do inconsciente. Não. O que se procura aqui é uma espécie de transtorno vertical (talvez), uma espécie de pilhas carregadas de uma “energia” (imagem e não conceito científico, por favor!) de algo que é da ordem do impossível, do impessoal, mas que não é nem exatamente universal ou divino. – que não é deus – pois – e que tem a ver com o corpo.

Porém, o corpo do Ator-Tarahumaras artaudiano, não é um corpo-curtição, ou um corpo dionisíaco, ou um corpo erotizado – não – ao contrário, é um corpo que renega seus órgãos, um corpo que foge das suas funções fisiológicas e, sobretudo, das mais prazerosas e alambicadas práticas sexuais.

Artaud fala de um corpo sem órgãos, sem presença anatômica – assim talvez como um corpo matematizado? E falar de matemática(s) em Artaud e no Grupo Tarahumaras não é algo tão surrealista assim. Porque Artaud/ele mesmo/ fala em “O Teatro e seu Duplo” de um teatro onde nada é deixado ao acaso. Onde o ator perde sua identidade para se transformar num simples parâmetro de uma equação preestabelecida como no Teatro Balinês, no Nô japonês, no Katakhali na Índia.

No ocidente temos o costume de dizer que o ator “encarna” a personagem. Ora, já no século XVIII, no seu livro “O Paradoxo do Comediante”, Diderot mostra justamente que o bom ator não é aquele que “encarna”, mas aquele que ao contrário tem uma distância fria com seu personagem, o ator se vê representando – o que é um exercício de consciência e não de possessão-encarnação.

E é essa robotização transcendental que seria da ordem de um transtorno revelador.

 

#GilbertChaudanne #GrupoTarahumaras

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