“Amor e identidade”, leia a análise do espetáculo, por Wilson Coêlho

O monólogo “No podía estar sin querer a alguien” (Não podia estar sem amar alguém), dirigido por Gustavo Delfino, é uma adaptação do conto “Dúschechka”, de Anton Pavlovich Chekhov, a partir de uma tradução do russo para o espanhol por Alejandro Ariel González. Este conto, escrito em 1899, tem como tema central o amor, cuja personagem principal é Olenka Plemyannikova.

A adaptação desse monólogo por Ana Alicia Bacigalupi, que interpreta Olenka, aquí como Laura, propõe-nos algumas reflexões. A princípio, a obra se mostra ao que veio pela epígrafe, um fragmento de “O segundo sexo”, de Simone de Beauvoir que diz: “É angustiante assumir uma companhia de vida. A sorte do homem é que eles o forçam a realizar os caminhos mais árduos, mas também os mais seguros; o infortúnio da mulher é que ela está cercada por tentações quase irresistíveis; tudo a incita a seguir o caminho da facilidade ao invés de convidá-la a lutar por conta própria. Dizem-lhe que ela não tem o que fazer, senão deixar-se levar e que, assim, alcançará paraísos encantadores; quando ela percebe, é tarde, suas forças se esgotaram.”

Na adaptação de Ana Alicia Bacigalupi, apesar de algunas mudanças, no que diz respeito aos personagens que compõem o conto, mantém-se a ideia da narrativa original da relação de Olenka Plemyannikova, aqui chamada de Laura, com os homens que amou, platonicamente, começando por seu pai e um professor de francês. Depois, três outros que atravessaram a sua vida, no que diz respeito ao amor carnal e romântico que marcaram a desgraça dessa mulher.

O primeiro, o senhorio e empresário circense dos Jardins Tivoli, Ivan Petrovich Kukin que, na obra de Ana Alicia Bacigalupi se chama Daniel García e é um diretor de teatro, oportunidade que aproveita para uma crítica na relação dessa arte com o seu público nos momentos atuais. Mas ela o perdeu muito cedo, pois morreu de um ataque fulminante.

Depois, ela se envolve e se casa com seu vizinho Adriano que, no conto original se chamava Vasili Andreich Pustovalov e também era um comerciante madeireiro. Poucos anos após, o perde carbonizado num incêndio, embora no conto de Chekhov teria sido por uma doença.

Novamente sozinha, acaba se aproximando e tendo um relacionamento com um veterinário militar que também não dura, porque – apesar de não morrer – ele volta para sua ex-mulher. Na obra de Chekhov, o veterinário se chama Smirnin. Faz-se interessante observar que, desses homens, na adaptação de Ana Alicia Bacigalupi, o diretor de teatro se chama Daniel García, o madeireiro Adriano, não tem sobrenome e, o veterinário, nem mesmo nome. De certa forma, nesse relato de violência e amor romântico da qual a mulher está submetida historicamente, parece que a estratégia da dramaturgia é tentar colocar Laura como uma força feminina que resgata um pouco de suas forças nesse universo patriarcal.

Retomando a ideia primeira do conto de Chekhov tendo o amor como o tema principal, em “Não podia estar sem amar alguém”, trata-se de um amor revelado e rebelado. Revelado no que diz respeito a uma espécie de ágape que, conforme sua origem grega, pode ser o amor que se doa, o amor incondicional, o amor que se entrega. Mas ao mesmo tempo ele é rebelado porque se coloca em xeque na medida em que na nossa sociedade ele produz uma autoviolentação.

Como já sugere o título, “Não podia estar sem amar alguém”, a obra chama atenção para o fato da invisibilidade da mulher na relação afetiva. A personagem Laura, por exemplo, na lógica amorosa, nunca tem uma identidade, assim como para muitas mulheres. A obra propicia uma crítica a essa identificação com o “ideal” que está na base de nossa sociedade machista. Esta mulher, a personagem Laura, sequer dispõe de palavras para expor as próprias ideias. Não é por acaso que, a cada um de seus relacionamentos com os três homens, todo o seu discurso não passa de uma reprodução do pensamento deles.

Faz lembrar um conto de Machado de Assis, intitulado “Ideias de canário”, sobre um pássaro que faz um discurso sobre o mundo a partir de onde fala. Quando está num antiquário, diz que “o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.” Depois, na varanda de seu comprador ou novo proprietário, “O mundo é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.”

Assim é o mundo de Laura, repetindo palavras que não passam de ideais encarnados dos homens, seja na arte, na segurança e, enfim, na maternidade, considerando que no final da obra ela cuida do filho do veterinário. “Não podia estar sem amar alguém” é uma obra que denuncia essa sociedade onde a mulher não consegue romper com essa transcendência que a deixa esperando, sem nunca buscar criar algo por si mesma para controlar os efeitos mortificantes da solidão, num mundo que foi construído para que ela somente tenha identidade reconhecida a partir do homem, ou seja, o amor como o último reduto do patriarcado.

Trata-se de uma obra de teatro para pensar nas consequências de uma sociedade que a todo momento ensina às mulheres que viver o seu amor próprio se dá pela sua negação e estar sempre a serviço do amor de um homem.

Este “No podía estar sin querer a alguien”, foi apresentado no Centro Cultural “Las Chicas”, de Vivorata (Partido Mar Chiquita), na programação do X Festival Internacional de Teatro Clásico Adaptado, do qual recebeu o prêmio de “Espectáculo Destacado”.

*Wilson Coêlho é poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo, escritor com 27 livros publicados, assina a direção de 28 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense e “Auditor Real” do Collège de Pataphysique de Paris.

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